08/03/2022

Uma breve história dos nossos gatos - Lito

Lito

Passou um ano desde que a Diva nos bateu à porta. Alguém no caminho para o trabalho ouviu um miado insistente dentro do carro. Parou e abriu o capô do motor. Um gato muito pequeno, magro, com o focinho bastante esfolado, com crostas de sangue seco e coberto de formigas, estava lá entalado. Já devia estar há uns dias. O senhor estragou o jantar das formigas e conseguiu tirar o gato. Sem saber o que fazer com ele, dirigiu-se a um posto da GNR. O soldado que o atendeu, aceitou o gato e, em vez de o entregar a uma instituição, levou a bolinha de pêlo amarelo para casa. Durante duas semanas ele e a esposa trataram dele, garantindo a sobrevivência do miador. Mas tinham vários gatos e cães, não dava para ficar com mais um. A esposa do soldado era colega de trabalho da minha mulher e... Já estão a ver no que isto vai dar não é? Pela primeira vez íamos ter mais que um gato, estávamos nervosos e com muitas dúvidas acerca da reação da Diva a outro gato, um macho, ainda por cima. Como era pequenino, escanzelado, os olhos e as orelhas destacavam-se enormes, desproporcionais ao corpo, o que lhe dava um ar cómico. A Diva não o aprofilhou mas, após um período inicial dedicado a estabelecer limites, assumiu um papel mais de tutora que de mãe e, ensinou aquela coisinha amarela a ser um gato. O nome foi fácil: Amarelo -> Amarelito -> Lito. A coisa correu bem e pouco tempo depois o novo elemento era tolerado, desde que não pisasse o risco. Um dia, ao chegarmos a casa, da porta de entrada ao outro extremo do corredor, parecia que tinha nevado. O Lito tinha roubado um rolo de papel higiénico e desfez tudo em bocadinhos muito pequenos, parecia um tapete de neve. Outro dia, vi-o passar numa velocidade tal, parecia que tinha sido disparado por um elástico, com a cortina do chuveiro as argolas o varão, tudo a arrastar atrás dele (esta veio a repetir-se um par de vezes). Noutro dia, reparei numa fila de pegadas de gato na parede do corredor, na horizontal, mais ou menos à altura dos meus olhos. Fiquei a coçar a cabeça, como é que raio...? Até que ele o fez à minha frente: Num disparo a uma velocidade alucinante, faz o corredor pela parede como se a lei da gravidade tivesse aberto uma exceção só para ele. A Diva estava e ensiná-lo como deve de ser. O Lito marca presença em todas as refeições (de vez em quando lá entorna um copo ou mete uma pata num prato), inspeciona tudinho muito bem e, prova (ou tenta), aquilo que lhe parece ser bom. Come uma folha de alface ao almoço e outra ao jantar. Se não houver, queixa-se. Talvez pelo início de vida complicado, é um gato muito medroso, espanta-se à mínima coisa, aparecendo visitas cá em casa, eclipsa-se tão bem que nem vale a pena procurar. E mia. Mia desalmadamente, a qualquer hora do dia ou da noite. A minha mulher teve um problema de saúde, cuja evolução iria causar episódios de dor intensa, nós sabíamos disso, os gatos não. Uma noite, fui acordado pelo Lito a saltar repetidamente em cima do meu peito e a miar com quantas forças tinha, a centímetros do meu nariz. Notei imediatamente a falta da minha mulher e calculei o que se passava. O Lito em dois saltos ficou à porta do quarto, parou, olhou para trás e largou mais um berro impaciente. Conduziu-me, com as orelhas para trás para confirmar que eu o seguia, até à casa de banho. Fui encontrar a minha mulher no chão, dobrada sobre si mesma, num dos tais episódios de dor. A Diva também estava lá, abraçava-lhe a cabeça e lambia-lhe a testa continuamente. Os gatos não entendem estrutura social nem hierarquia (isso é para os cães), são predadores solitários que, no máximo, toleram-se uns aos outros por interesse. Mas entendem família. Tivemos a prova disso. Cinco anos de Lito e a contar. Escolheu-me a mim, é a minha sombra, segue-me para todo o lado, um companheirão. Jogamos à bola, é um exímio guarda-redes. Apanha-a rigorosamente todas as vezes, e vem depositar a bolinha (daquelas de esponja para aliviar o stress, supostamente) aos meus pés para eu voltar a atirar. Olha-me com um ar algo incrédulo como quem diz: "Tu, para gato, és um bocado incompetente. Não marcas nenhum golo!" Ando a esforçar-me por ser melhor gato, não quero desiludir o Lito.




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