Hilka
(A.K.A. Morceguito)
Não havia lugar para estacionar na rua onde vivemos, estacionámos numa transversal perto. Estava um ajuntamento de pessoas no meio da rua a olhar para cima. Aproximamo-nos e o motivo tornou-se óbvio: um gatito preto com poucos meses miava desesperadamente numa varanda. Um vizinho disse que estava assim há dois dias, a miar em contínuo. Tocámos à campainha várias vezes mas ninguém respondeu. Estávamos a ponderar arranjar uma escada ou, chamar a polícia, quando alguém aparentemente alcoolizado veio à varanda. Trazia uma embalagem de comida numa mão e agarrou no gato com a outra. Sugeriu que toda aquela comoção na rua estava a provocar a reação patente no gato, nada mais que isso. Trocaram-se algumas palavras menos simpáticas e o fulano voltou para dentro de casa levando o gato com ele. Os populares começaram a dispersar, entre os poucos que ficaram ponderava-se se não seria melhor chamar a polícia à mesma. Se o fizéssemos, com tudo agora já calmo, ia ser complicado explicar o motivo. "Sabe Sr. Guarda, eu sei falar gato e o bichano fez-me imensas queixas!". Calculo que quem ia preso era eu. Nisto, o fulano veio à porta do prédio e atirou o gato para a rua, literalmente. A minha mulher agachou-se e nem foi preciso chamar, ele veio a correr e saltou-lhe para o colo. O animal voltou para casa, o gato veio conosco. Onde comem dois, comem três. A tijela de água que chega e sobeja para a Diva e o Lito, bebeu tudo de uma vez, devorou uma lata de paté em segundos. E a seguir... vomitou tudo e borrou-se todo. No dia seguinte fomos com ele ao vet. Além de desidratado e desnutrido, estava tudo bem. De pouco mais de meio quilo de peso, num ano, passou a cinco quilos e meio. O Lito assumiu o papel de supervisor de qualidade alimentar cá em casa, persistente mas, só prova o nosso prato, não come. O Morceguito é mesmo lateiro, come tudo, de tudo. Mas a sofreguidão por comida já está a passar. Calculo que durante o próximo ano a coisa normalize e não seja necessário dieta. Actualmente, os actos de pirataria à mesa, parecem-me mais ligados ao instinto de caça do que ao trauma da fome. Uma excepção: É louco por batatas fritas, não resiste à tentação. A Diva decidiu ignorar a nova presença e, se o Morceguito tenta meter-se com ela... só manda um olhar daqueles, ele encolhe-se todo e dá de fuga. O Lito... tem sido difícil. É outro macho e, apesar de entretanto castrado, é visto como concorrente, especialmente no que toca a mim. O Lito é o meu gato e não vai abrir mão dessa posição. Com muitos rosnados e assopradelas, a pontos do Lito ter ficado primeiro rouco e pouco depois afónico, a coisa tem vindo a acalmar. Bulham imenso mas sem danos de parte a parte. O Morceguito invariavelmente opta pela submissão e as bulhas vão transmutando para brincadeiras. Ao início, nas perseguições, o Lito alcançava-o com dois passos, agarrava nele com as patas da frente, virava-o no ar e deitava-se em cima. Viam-se quatro pontos pretos agitados debaixo de uma bola amarela. Agora, já não dá. O Lito é musculado e não tem uma única grama de gordura, o Morceguito parece uma melancia com cauda. Em tempos comprámos umas luvas de construção civil para brincar com a Diva e o Lito sem ficarmos com as mãos estropiadas (quem nunca teve quatro furinhos na carne entre o polegar e o indicador, nunca brincou verdadeiramente com um gato), ambos têm pânico das luvas e, a brincadeira acaba mal as veem. Mau investimento. Até ter chegado o Morceguito. Ataca-as com alma. É imensamente dócil e baba-se profusamente quando faz ronron. Ensopou-me a barba em saliva algumas vezes. A orientação do pêlo faz um risco do pescoço à cauda, quando apanha um susto e fica com o pêlo em pé, faz uma crista. Nem com gel os Punks conseguem uma crista tão perfeita. É um morcego querido que escolheu o Lito como orientador espiritual. Tudo vai acabar por encaixar. Com o frio já aceitam a partilha do mesmo espaço, com contacto físico e tudo. Até a Diva, pasme-se. Um ano de Morceguito e a contar.
(O nome Hilka tem a ver com uma bebida de elevado teor alcoólico, em língua estrangeira. Fica assim a explicação, o resto, não é relevante nem pertinente.)
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