Não foram poucas as vezes que ouvi, ora em conversas casuais de café, ora em debates mais emotivos, discussões acerca da diferença de qualidade da música produzida no passado comparativamente à que se produz hoje. Com especial relevância para a qualidade excepcional da música na década de 80. De um ponto de vista externo ao diálogo, claro que a primeira consideração a ter é, a faixa etária dos intervenientes. O que se ouve na adolescência tem um impacto muito mais significativo que em outra altura qualquer da existência humana. A qualidade da música da minha adolescência é superior à qualidade da música preferida por todos os que diferem dez anos de mim, para cima ou para baixo.
Identificado este filtro, o do ponto de vista pessoal mediante uma referência cronológica, deve-se ter também em conta o grau de envolvimento dos intervenientes com o universo das artes, especificamente o da música. Consumidor passivo? Consumidor activo? Músico amador? Profissional da área? O nível de conhecimento sobre o tema em discussão difere substancialmente entre eles.
De facto, excepto os profissionais da área, ninguém (ou quase) se apercebe que na realidade estão a discutir um tema que implica muito mais que apenas a música em si. Ao que se estão a referir, sem saber, é a diferença entre uma época analógica e uma época digital. Há um antes e um depois. Deixando de fora as opiniões e discussões académicas de profissionais de topo acerca do assunto, na minha opinião, alinho pelo discurso de um produtor bastante bem cotado: "Independentemente da elevadíssima qualidade dos meios digitais actuais, o cérebro humano é analógico. Como tal, percebe a diferença". Mesmo que o consciente seja lubridiado por sample rates elevados, o subconsciente percebe a diferença. A experiência auditiva de música gravada, a partir de um determinado momento no tempo, passou a ser diferente. Esse momento no tempo, coincide com a conversão tecnológica do analógico para o digital, que, coincide com a distinção que o Zé comum faz da qualidade da "música de antigamente" da qualidade da "música de hoje". Coincide sem ser coincidência.
Como em qualquer processo de conversão, existe um período de transição onde os híbridos surgem. Coisas analógicas e digitais em simultâneo. Os últimos discos em vinil, já com registos digitais lá gravados, os primeiros CDs ainda com registos analógicos lá gravados. À semelhança da evolução de mono para stereo, onde os discos ainda em mono exibiam uma etiqueta com os dizeres "compatível com sistemas stereo", inicialmente, numa tentativa de domesticar os consumidores mais hesitantes (ou cautelosos) os CDs exibiam na contracapa a sigla AAD, ADD, DDD, referindo a tecnologia usada (Analógica ou Digital) nas diferentes fases do processo: gravação, processamento, reprodução. Sendo em CD, obviamente o último caractere seria sempre D. Dos discos mais conhecidos a beneficiar do melhor dos dois mundos, para exemplificar evitando recorrer a albuns das minhas estéticas preferidas enterrados em cavernas profundas de subgéneros obscuros, foi o Kick dos INXS. Segundo dizem. Um dos discos mais bem feitinhos de sempre, de qualquer modo.
Em vários meios profissionais, regista-se um regresso ao passado tecnológico, precisamente por se ter detectado alguma insatisfação, algum desconforto na experiência auditiva, apontando responsabilidades ao digital. Regressam as válvulas, regressam os voltímetros, regressam os transformadores toroidais, regressa a fita magnética. Tudo isto, envolvido em custos astronómicos. Equipamentos desprovidos do fabrico em massa, tornam-se caríssimos. Adicionalmente, há a poluição gerada pelo fabrico destes equipamentos, actualmente brutalmente taxada. Ou seja, os meios existem sim, mas não são para qualquer um.
A redução significativa de custos que o digital ofereceu ao mundo da música, trouxe com ele um efeito colateral: a criação de um novo elitismo. A democratização da criatividade com "cada computador pessoal, um estúdio em potencial" vem a revelar-se como uma meia verdade. Tanto na gravação como na reprodução, a experiência auditiva mediante determinados predicados que, anteriormente à conversão digital, eram o comum, o banal, para toda a gente (rádio, tv, discos, cassetes), passou a estar reservada apenas a quem pode. Para o comum, para o banal, para o Zé, fica o digital gravado a 48kbps, o streaming, a reprodução em telemóveis, colunas wireless de uma via, stereo simulado e graves ultra potentes.
Algures no processo entre a gravação e a reprodução, por muito analógico e purista que seja o credo, obrigatoriamente ocorre pelo menos uma digitalização, quanto mais não seja para enviar as masters via internet para a fábrica que prensa o vinil. A imagem romântica de um fulano a levar uma caixa com bobines de fita magnética do estúdio para a fábrica, fica reservada ao imaginário saudosista. Verdadeiramente analógico... Já não existe nada. Mesmo com custos elevadíssimos, a experiência auditiva "do antigamente" só pode ser repetida com as gravações e meios "do antigamente".
Isto tudo para dizer que, arranjei três discos de música clássica, edição de 1962, ainda em mono, novos a estrear, selados, por 1€ cada um, numa feira de velharias. Se abano mais a cauda começo a mandar bibelots ao chão.
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