30/09/2022

Cromos

Existe uma diversidade de cromos imensa. Tantos quanto seres humanos. Os cromos com maior visibilidade acabam por criar um género, uma caderneta temática, onde se reunem os melhores cromos com o mesmo denominador comum.

No mundo corporativo, um gestor cromo, quando entra para uma empresa, depois de uns meses a inteirar-se da realidade da instituição, a primeira coisa que faz é, explicar ao concelho de administração que, a coisa não avança, porque os produtos são medíocres. Baseada neste parecer mas alienada do facto que novos produtos trazem novos problemas, a empresa investe em... novos produtos, novo design mais apelativo, novas funcionalidades. Processo para durar um ano ou dois, senão mais, após os quais... os resultados pioram.

Perante isto, o gestor cromo, em reunião com o concelho de administração, recorre a uma apresentação com powerpoints inebriantes e armado das buzzwords mais recentes no universo da gestão, explica que, as coisas não andam para a frente porque, a estrutura orgânica da empresa gera demasiadas entropias, que comprometem a capacidade de resposta ao mercado cada vez mais exigente e, minam a criatividade na inovação, exigida pelos mercados emergentes. Mediante este parecer, a empresa investe na restruturação, na ergonomia operacional, na simplificação processual, na virtualização de circuitos, na integração de sistemas. Perdendo todo um valioso histórico, capaz de gerar poupanças pela informação acumulada, reutilizável. Processo para demorar três ou quatro anos, senão mais, após os quais... os resultados permanecem com tendência descendente.

Então, o gestor cromo, em reunião com o concelho de administração, de apontador laser wireless na mão, explica que a coisa não anda para a frente porque, os recursos humanos são incompetentes, inadequados, carecem de formação académica, incapazes de responder à ambição exigida pelos acionistas. Em consequência desta análise, a empresa despede quase toda a gente, desperdiçando todo o know-how adquirido ao longo da sua existência. Contrata novos recursos, com a formação académica especializada para as funções, com o ónus de os ter de formar para a sua realidade específica.  Processo que demora um ano ou dois, senão mais, após os quais... os resultados são desastrosos.

Passado quase uma década de carreira com ascensão meteórica naquela empresa, o gestor cromo, comunica ao concelho de administração que está desgastado pela função e decidiu abraçar um novo desafio, noutra empresa, com melhor salário, regalias superiores e, um reconhecimento mais justo da sua competência e visão.

A empresa que, antes da sua chegada até  funcionava, embora aquém da ambição dos acionistas, fica sumariamente na estaca zero. O gestor cromo, deixa um rasto de cadáveres atrás de si. Diz entre dentes por cima do ombro "O último a sair que apague a luz", bate com a porta do Jaguar e acelera sorridente com destino à repetição da fórmula de sucesso noutro sítio.

No mundo das artes os cromos são diferentes, outro contexto outra caderneta. Embora seja possível traçar paralelos.

O músico cromo decide criar, expressar a sua criatividade mas, acima de tudo, deseja ser idolatrado, ter sucesso. O músico cromo entende que, a expressão criativa, só tem hipótese de vingar obedecendo a uma série de parâmetros pré definidos. Os standards. Por vezes a obediência a estes standards é tão rigorosa que se torna indistinguivel do plágio. O músico cromo cola-se tão fielmente à estética seleccionada que a criatividade é próxima de nula. Quando questionado ou criticado acerca do assunto responde: "Este género, é assim que se toca. Ponto." O tempo passa e o projecto do músico cromo não vingou. Porquê? Porque por muito que se goste de couves com feijão, sempre a mesma coisa ao pequeno almoço, almoço, lanche, jantar e ceia... enjoa. E como couves com feijão é um prato tão banal, haverá sempre alguém que o cozinha de forma mais apetitosa que o músico cromo.

O músico cromo, culpa a orgânica da banda pelo insucesso. É demasiada malta a mandar. Demasiada democracia. Por isso é que a coisa não vai para a frente. O músico cromo inventa forma de ser ele e apenas ele a mandar na criatividade da banda. Criatividade essa, já espartilhada pela política dos standards, vê-se nas mãos exclusivas de um único pensador. Afunila ainda mais. O projecto do músico cromo continua sem vingar.

Chegado a este ponto, o músico cromo atribui a responsabilidade da estagnação à incompetência dos outros músicos. Não sabem tocar com alma aquilo que ele cria. Falham e distorcem o conceito, tão cuidadosamente pensado. Arranja forma de todos os incompetentes se retirarem do projecto e passa ele a fazer tudo. Quando é preciso tocar ao vivo, ou rasteja e pede batatinhas ou, paga. Ou, ainda, sobe ao palco orgulhosamente só, acompanhado por um computador portátil.

Tudo serve para o músico cromo não  enfrentar as suas próprias limitações. Técnicas, criativas, sociais. Subitamente o músico cromo já não afirma criar arte dentro de um determinado género. Após um retiro espiritual no Tibete, o seu quarto em casa dos seus pais, decidiu dedicar-se à música experimental. E o projecto do músico cromo continua sem vingar. Porque o tempo passa. E, há algo de repelente em ver um velho enrugado de cabelo branco em cima de um palco a balbuciar para um microfone, acompanhado por um computador portátil.

Intitulei-o Cromos mas na realidade, este texto, é acerca de desperdício. Se calhar é a mesma coisa. Uma história sem moral. Só a história. Um desperdício. Cromo.

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