19/07/2022

Legendas, por favor

É recorrente pensar que, quando a arte tem de ser explicada, alguma coisa falhou no processo criativo. O objecto artístico não possui a competência para transmitir a mensagem de forma auto suficiente. Necessita de legendas.

Várias vezes discuti isto com colegas e amigos. Invariavelmente encontram-se justificações alternativas que desculpam a arte e o artista, colocando a responsabilidade do falhanço no espectador, nas suas incapacidades cognitivas. Se o gajo não percebe, é porque é burro.

Por vezes, sou esse gajo. O burro.

Na fotografia, assistiu-se nos últimos anos a uma condenação ao irrelevante da componente documental desta arte. Pelas possibilidades que se abriram com o processamento digital, o objectivo passou a ser a criação de imagens bonitas, impressionantes, que, não têm rigorosamente nada a ver com aquilo que passou pelas lentes e foi registado no filme ou CCD, conforme analógica ou digital. Técnicas digitais de edição fotográfica geram imagens embasbacantes, impossíveis de serem testemunhadas na vida real.

Embora mais próximos da Arte Digital do que da Fotografia, estes autores assumem-se como fotógrafos. Mesmo contabilizando o tempo dispendido na selecção do local, as decisões acerca da época do ano e hora do dia para a selecção da luz ideal, ângulo e enquadramento, preparação do equipamento, e finalmente o clique, ou vários cliques, o tempo dispendido na edição é superior. Horas de Photoshop, Lightroom, stacking, sky replacement, masking, face lift, e mais um par de botas, não fazem uma excelente fotografia, muito menos um bom fotógrafo. Fazem uma imagem bonita e um bom operador de aplicações informáticas.

Talvez derivado à obsessão com a beleza perfeita, prima do eternamente jovem, linhas orientadoras para obter consumos comerciais frenéticos na sociedade contemporânea, extinguiu-se o interesse, (porque não a capacidade?), de apreciar o assimétrico imperfeito e feio, real e verdadeiro.

Actualmente todas (exagero óbvio) as fotografias com água em movimento, são feitas com exposições longas, obtendo-se um algodão fofinho, sem textura alguma. Os céus abandonaram o azul branco amarelo laranja cinzento, e, adoptaram lilazes roxos verdes, mais cativantes ao olho do espectador. Todas as imperfeições cutâneas e manifestações pilosas foram banidas dos rostos e corpos humanos. A luz natural, deixou de ter relevância, as sombras igualmente. Passaram a obedecer ao ângulo de incidência atribuído por um clique de rato.

É falso, artificial. Deveria ser entendido e apreciado como tal. Mas ao belo e perfeito ninguém ousaria adicionar legendas. Informação danosa que corrompe a mentira tão avidamente desejada.

E assim, a componente documental, implícita à fotografia, deixou de o ser. Retirar algo, empobrece. Por muitos artifícios que sejam adicionados, não há volta a dar. Perda é perda. Declino qualquer responsabilidade atribuída à minha capacidade cognitiva perfeitamente incapaz de apreciar Arte Digital anunciada como Fotografia.

Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Senão, é gato por lebre. A isso chama-se desonestidade. A lente não mente. Torna-se preocupante ter de explicar isto.


PS - Abro excepção à Fotografia de estúdio, onde por definição a luz é artificial, assim como são admissíveis uma série de técnicas de manipulação da imagem captada.

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